terça-feira, 16 de novembro de 2010

Terapia de Pretérito - episódio I

A lembrança mais antiga da melhor amizade que eu tinha é, imagine, sobre uma briga. É algo pequeno e insignificante, e eu não sei o que está fazendo perdido na minha memória.
Ok, não era bem uma briga. Era a minha mãe, que ralhava com ele, o meu anjo, enquanto limpava a minha bunda no nosso humilde banheiro, e ele estava na porta, pedindo desculpas. Acho que eu tinha 3. Se eu tinha 3, ele então tinha 4. Estávamos num aniversário, e acho que era o do meu irmão, pois era aqui em casa. Poderia ser o meu também, não sei, pois acho que eu estava usando um vestido azul-escuro que parece ter sido dos meus dois anos, com a festa temática dos Ursinhos Carinhosos. Eu me lembro que ele estava com uma blusa que parecia de frio, de xadrez vermelho e preto. Ele ainda tinha aquele cabelinho liso em forma de cuia. Tão bonitinho.
É uma lembrança meio cômica se eu for indagar o porquê da minha mãe estar limpando a minha bunda na privada com a porta escancarada, e com ele nos observando de lá. Mas é engraçado como as nosas lembranças podem alterar. às vezes ela não tava limpando a minha bunda, mas sim examinando um machucado, que provavelmente ele fizera, e por isso ele estava pedindo desculpas.
Eu tenho quse certeza de que ele não estava pedindo desculpas por estar no banheiro enquanto eu estava quase nua. Eu disse QUASE. É como tentar se lembrar de um sonho. Nos sonhos muitas vezes você tem certeza de coisas que você não viu, mas sentiu.
O que me surpreende era o jeito dele nos pedir desculpas. Ele não parecia ter 4 ou 5 anos. É verdade que ele sempre foi muito inteligente. Além disso, ele tinha o TALENTO de pedir desculpas, por favor, etc. Ele sempre foi gentil, como eu nunca fui, e como nunca vou ser por completo. Ele não era arrogante. Sobretudo por não ter medo de pedir desculpas, como tantas vezes eu tenho. Ele era tão franco, tão... anjo.

[terapia de pretérito] Anjo.

Eu só sabia que anjos e príncipes existiam porque ele existia.
Talvez seja melhor que não exista mais, eu acho. Porque eu nunca poderia ser a sua princesa, como eu fui. Já deixei de ter cabelos curtos e bem cuidados há um tempão.
Mas e ele?
Eu tenho um pouco de medo de saber. às vezes o que eu quero é que ele continue sendo como eu imaginava.

Ele era o meu protetor, disso eu me lembro bem. Ele era tudo o que existia de bom no mundo, um sonho que toda menina tinha o direito de ter, mas não tinha. Oh, como eu era sortuda! E eu sabia disso, lá no fundo, e eu era pura demais para me gabar disso abertamente. Eu só sentia orgulho, e é claro, um pouco de posse sobre ele. Eu era tão feliz!
Ele era meu anjo, meu príncipe, e [orgulhosamente] pela boca dos outros, meu namorado. Namorado coisa nenhuma. Um lado do meu coração estava muito bem reservado para outros, e o outro, só para ele. Essa reserva só podia ter nascido comigo, pois era tão natural, tão inocente, que eu nem refletia sobre isso [como eu já fazia a respeito dos outros garotos].
Eu era tão feliz.

Terapia de Pretérito

Não que ficar remoendo o passado seja um bom hábito; talvez por isso mesmo eu seja adicta a ele.
Mas dessa vez é diferente. Percebi que estou muito ligada a passados que são ao mesmo tempo recentes e dolorosos, que eu já devia ter esquecido, e quando os esqueço, me vem o vazio de um futuro branco e estranho, e isso porque não consigo me contentar com o presente. Alguma coisa me falta, aqueles momentos em que eu conseguia ser feliz de verdade por me sentir completa, me faltam. E esses momentos, pessoas e coisas ficaram tão para trás.
Então eu venho exercendo uma terapia sempre que posso. Volto lá atrás e tento vasculhar lembranças de momentos que não existem mais, e que de forma alguma não seriam retomadas, pois as idades, pessoas, lugares e coisas não existem mais. E aí que está a magia, porque essas lembranças não podem ser maculadas com fatos e remexidas do presente, pois esse passado é tão distante, tão diferente do que eu hoje sou, que as lembranças vão ficar para sempre puras, como a minha vida já não é.
E esse novo negocio de 'remoer passado' me faz bem. É quase a mesma sensação de sonhar que está voando. Uma paz à qual eu me agarro, e não quero deixar ir, pois à medida que eu vou me esquecendo de quem eu fui, mais vou me distanciando de quem eu sou.